• Home
Blog - Daniel Cardoso
My WordPress Blog

Archive for Activism

Liberdade de expressão, censura e Direitos Humanos

 

A recente confusão em torno do adiamento da conferência de Nogueira Pinto veio – de novo – levantar uma questão com a qual Portugal parece endemicamente fadado a não saber digerir, e que já tinha surgido várias outras vezes ao longo dos últimos anos, nomeadamente com o caso do Charlie Hebdo: as distinções entre liberdade de expressão, discurso de ódio e suas correlações com censura.

Queria começar por prefaciar este texto situando-me: dou aulas a pessoas que querem ser jornalistas, e acredito na importância fundamental da liberdade de expressão para a manutenção, não apenas da democracia, mas do pluralismo democrático – para mim, uma condição incontornável de qualquer sentido forte de ‘democracia’. Mas também acrescento que, por ter participado num projecto de investigação, há vários anos e sob a gestão da Profa. Dra. Ana Cabrera, relacionado com a censura ao teatro e cinema durante o Estado Novo, tive acesso directo a documentação única, que coloriu o meu entendimento do que ‘censura’ quer dizer, para além das considerações teóricas básicas. Posso portanto não ter sequer idade para ainda ser nascido durante a ditadura do Estado Novo, mas foi-me dada uma edificante oportunidade de perceber como funcionavam os bastidores da censura, como decorriam as reuniões, que discussões eram tidas, e até que ponto o lápis azul era usado, por exemplo, em peças de teatro que falassem de grelos.

 

Estas considerações feitas, quero também avisar que nada do que vou escrever aqui é novo ou de algum modo revolucionário, mas dada a quantidade de discussões em que me vejo envolvido ao longo dos anos sobre este assunto, preferi juntar os meus pensamentos num sítio só, de fácil referência.

 

1 – Liberdade de expressão enquanto Direito

Disse, e repito, que a liberdade de expressão é fundamental para o processo democrático plural. Porém, esta frase precisa de ser qualificada, ou esclarecida, especialmente porque parece haver uma incompreensão profunda sobre o que constitui um direito, e quando se pode ou não falar de direitos. O primeiro elemento, e mais importante para esta conversa, é o facto de que não existem, em democracia, direitos absolutos. Aliás, o absolutismo vai buscar o seu nome precisamente da concentração de poderes, e portanto de direitos, na figura do monarca. O que quer isto dizer? Que existem limitações práticas aos direitos – ou seja, momentos e contextos em que uma determinada acção, ainda que pareça materialmente semelhante a outra, deixa de constituir o exercício de um direito; geralmente, isto dá-se quando o exercício dessa acção vai infringir directamente ou indirectamente os direitos de outra pessoa, de uma forma que não encontra justificação. Um exemplo extremo, mas comum, é o da liberdade de circulação: o direito que eu tenho a circular livremente permite-me, por exemplo, ir de país para país na UE, mas não me permite entrar em casa de outra pessoa sem autorização. Do mesmo modo, também não se considera que o perjúrio em tribunal seja uma violação da liberdade de expressão, porque se considera que mentir não está ao abrigo dessa mesma liberdade, ainda que o acto possa parecer, materialmente, o mesmo.

Outro factor tem que ver com um entendimento problemático do próprio acto de ‘expressão’. Geralmente agregado sob o binómio falar/fazer, a expressão é, a um tempo, entendida como uma acção fundamental para a existência humana, e um não-acto, sem consequências materiais ou reais. Assim, pegando no exemplo acima, entrar em casa de alguém sem convite é negativo porque existe uma invasão física do espaço; no caso da mentira em tribunal, existe o risco físico de alguém ser indevidamente preso. Porém, esta presunção de uma diferença entre falar e fazer vai contra, por um lado, a academia estabelecida sobre o funcionamento da linguagem e, por outro lado, contra o próprio senso-comum. Nós fazemos coisas com a linguagem, coisas essas que têm efeitos físicos: promessas e compromissos que nos levam a estar no lugar X às Y horas, trocamos palavras que nos deixam fisicamente eufóricos ou tristíssimos, e por aí em diante. Não estou a dizer que são, por exemplo, esses sentimentos que justificam ou deixam de justificar a existência da figura de ‘discurso de ódio’. Estou apenas a defender que não existe sustentação para a ideia de que fazer é diferente de falar. Tal como existe já bastante investigação que mostra a ligação entre bullying verbal e resultados negativos ao nível da saúde.

Resta portanto tentar perceber se de facto existe ou não existe alguma violação de direitos alheios com discurso homofóbico, xenófobo, sexista, e afins. Ora, aqui entram dois elementos diferentes: por um lado, o discurso de ódio é, pela sua própria natureza, uma afronta aos direitos de cidadania a que toda a gente tem direito; por outro, (e claro que estes dois pontos são apenas uma separação artificial), a enunciação de discurso de ódio implica, por si só, uma anulação do reconhecimento político das pessoas abrangidas pelo discurso de ódio. Bem sei que isto, dito assim, parece algo superficial ou básico. Mas a verdade é que, ao nível político, não existe nada pior do que isso. Não existe nenhum tipo de violência simbólica política mais grave do que a anulação do reconhecimento político. Porque, perante esse acto, todos os outros se tornam automaticamente legítimos. Assim, muito para além do sofrimento pessoal que tal acto possa causar – e que, sim, também tem que ver com o direito de estas pessoas não serem agredidas, uma vez que agressões verbais não são menos reais – a desautorização ou não-reconhecimento são uma violência política extrema, absolutamente inaceitável. [Já aqui me dirão que me estou a contradizer, na medida em que disse que nenhum direito era absoluto e agora estou a dizer que a ausência de reconhecimento é absolutamente inaceitável. Têm razão, verdade, parabéns. Para manter a coerência, então, vou admitir uma excepção a esta questão, que trato no ponto 3.]

2 – Da censura e dos silêncios

Outro elemento desta discussão, e que é tratado por algumas pessoas como relativamente independente do acima, tem que ver com a censura e do papel nefasto que esta pode ter para a democracia. Ou seja, ainda que se reconheça que existe o direito, em algumas circunstâncias, a limitar a expressão (porque a liberdade de expressão é ultrapassada e violada), considera-se que a censura é, essa sim, inaceitável porque decorre sempre da violação total de práticas democráticas necessárias.

Aqui, é já hábito comum citar uma frase daquelas que circulam pela net, e que em português é qualquer coisa do género “Posso discordar do que dizes, mas morreria pelo teu direito a dizê-lo”. Também em boa forma internética, esta citação é erroneamente atribuída a uma série de personalidades diferentes. A verdade da citação é bem mais prosaica – Evelyn Beatrice Hall escreveu uma obra sobre Voltaire e, comentando um certo acontecimento, condenou o acto de censura envolvido. Voltaire nunca disse a tal frase, Evelyn Hall apenas a parafraseou nos seus próprios termos.

No entanto, e ironicamente, a situação comentada por Voltaire serve-nos muito bem de exemplo prático aqui (e também de exemplo prático sobre por que é perigoso citar o que não se conhece a fundo, mas isso é outra história!…). O que estava Voltaire a ‘defender’? Um tratado filosófico e político anti-monárquico e anti-religioso. Voltaire não concordava com o dito tratado. Porém, o que sucedeu ao tratado? Ora, entrou em acção o poder executivo e judicial, e todos os exemplares conhecidos na altura foram queimados publicamente, mas só depois de o autor publicar preventivamente uma retractação, depois de ele se exilar voluntariamente para fora de Paris, e depois de o tratado ser colocado na lista de obras proibidas da Igreja. É contra todas estas medidas que Voltaire se manifesta, na altura. Reparem agora nos detalhes: temos, como no caso aqui em análise, uma forma de comunicação que toca temas políticos; até aqui tudo bem. A questão é que esta é a única semelhança paralela. No caso francês do tempo de Voltaire, o que suscita a condenação do filósofo é a intervenção estatal e religiosa.

Posto de outra forma, e sendo mais formal: não pode chamar-se censura a todas as formas de silêncio criadas por qualquer actor social, uma vez que a palavra censura pode apenas aplicar-se quando existe a intervenção da (ameaça de) violência de Estado no impedimento sistémico e total de uma determinada ideia ou categoria de pensamento. Existem imensos momentos em que alguém pode tentar falar e ver a sua vontade de falar ser-lhe negada – experimentem ir fazer um comício político para o meio de um funeral; ou no meio da rua às 4 da manhã com altifalantes, e verão o que vos acontece. E mesmo nestes casos, que podem envolver o Estado (na figura da polícia enquanto violência de Estado autorizada), não se falaria de censura. Porquê? Porque não apresentam carácter sistémico e total – e porque têm que ver com a preservação de outros direitos.

Portanto, é preciso ver, neste caso (seja o Charlie Hebdo, seja o Nogueira Pinto), se houve intervenção do Estado (não), e se essa intervenção foi sistémica (não) e total (não). Que provas há disso? Simples: consigo em segundos encontrar variadíssimos livros do autor em questão. Mais ainda – e para aquelas pessoas que defendem que é preciso deixar falar o discurso político, sob risco de se cair numa ditadura do pensamento conformista – consigo comprar o Mein Kampf, consigo comprar mil e uma obras de autores fascistas, reaccionários, etc etc. Uma conferência, um aparecimento público, um qualquer momento de intervenção não-Estatal não é censura, é apenas um ‘cala-te, que já não há quem te ature’. Geralmente, quando estamos no nosso espaço, é legítimo mandar calar alguém (comício no funeral), ou quando estamos perante uma violação de direitos alheios também (comício às 4 da manhã). Este caso tem ambas as razões juntas, e nenhum dos pormenores que qualifica a censura enquanto tal – nenhum mesmo.

3 – Da tolerância e da argumentação no espaço público

Assim sendo, eu sou totalmente a favor da ideia de que várias das coisas com as quais discordo profundamente tenham espaço para serem discutidas e debatidas. Essas coisas, porém, não incluem as que violam direitos alheios e que constituem formas de agressão política directa, uma vez que a agressão é, pela sua própria natureza, contraprodutiva para a produção de discurso político válido e útil.

Uma terceira objecção que é feita ao boicote de discurso fascista e de ódio tem que ver com esta mesma ideia: de que, por muito que as ideias sejam desgostosas, elas precisam de ser toleradas – que a tolerância é um valor fundamental da democracia, e que sem essa tolerância não existe verdadeira representatividade no espaço público. Porém, também aqui existem dois equívocos. O primeiro equívoco – da relação entre tolerância e democracia – é particularmente estranho, tendo em conta a matriz cultural europeia que nos rodeia. Aliás, ninguém mais insuspeito que o próprio Immanuel Kant o disse, no seu famoso texto de resposta a “O que é o Esclarecimento?” – que a tolerância é a coisa menos democrática que se pode imaginar, que seria um rebaixamento de qualquer tipo de autoridade, essa ideia de que certo discurso ou certa liberdade pode ser tolerado.

Ele não foi, de resto, o único a dizer tal coisa. É relativamente consensual a ideia de que a “tolerância” não é uma postura democrática pluralista, na medida em que enfatiza e reforça uma estrutura de poder vertical existente. Se uma determinada ideia deve ocupar o espaço político, público, então ela tem o direito de o fazer. Se ela necessita de ser tolerada, então está à mercê de quem exerce ou não essa tolerância enquanto beneplácito, o que, convenhamos, não é uma postura muito democrática.

O segundo equívoco tem que ver com a necessidade dessa tolerância para o processo democrático. Aqui, não vou buscar o Kant, mas uma outra figura, também não particularmente conhecida por teorias muito politicamente radicais: Karl Popper. Popper falava do paradoxo da tolerância: que uma sociedade supremamente tolerante se iria, por o ser, auto-destruir-se. Esta auto-destruição viria do facto de que tal tolerância se estenderia às pessoas intolerantes que, menos coarctadas por esse paradoxo, estariam à vontade para cumprir o seu próprio projecto político e portanto eliminar as pessoas tolerantes. Ou seja, toda a sociedade disposta a tolerar a intolerância estaria condenada ao cumprimento da intolerância total. Também John Rawls, apesar de dizer que a sociedade precisa de tolerar a intolerância, avisa que o princípio de auto-preservação de uma sociedade tem primazia sobre a tolerância, uma vez que a própria tolerância se predica na existência continuada dessa mesma sociedade.

Ou seja, se é o pluralismo que interessa e a diversidade de opiniões, então é fundamental olhar para as consequências materiais das escolhas que fazemos: a manutenção de uma atitude que alimenta, promove ou tolera os fascismos e os discursos de ódio conduz à extinção do próprio valor da diversidade, e da diversidade em si mesma; é portanto a pior escolha possível para quem diz querer manter essa diversidade.

É pela preservação do espaço público, é pela preservação do direito a continuarmos a falar e a debater que se torna necessário validar a ideia de que o espaço público tem o direito a defender-se – que nós o devemos defender. O mesmo é dizer, portanto, que o discurso de promoção do fascismo, do racismo, da xenofobia e do sexismo não acrescenta nada ao espaço público: não só por ser ameaçador para ele, mas também porque (como se viu acima) estas ideias não são novas e já circulam no espaço público. Nogueira Pinto, pese embora a fascinação que alguns sectores têm por ouvir um Professor a falar, não ia dizer nada que fosse verdadeiramente novo, ou que não tivesse já dito com muito alcance. O espaço público não ficou mais pobre sem tal intervenção, como não o ficaria sem várias outras expressões de discurso de ódio.

4 – Do discurso enquanto acto de poder

Uma última abordagem que quero fazer notar tem mais que ver com o caso do Charlie Hebdo e afins, do que com o caso Nogueira Pinto, e portanto que ver com formas mais subtis de discurso discriminatório, geralmente disfarçado de “crítica política”. Defende-se nestes casos que o humor e o gozo são fundamentais para permitir crítica política [sim, é notável o quanto a ideia de crítica está presente em grupos que, em chegando ao poder, recusariam qualquer tipo de crítica das formas mais opressivas possíveis], e que abdicar desta ferramenta seria perigoso. Geralmente, a comparação feita é com a famosa figura europeia do ‘bobo da corte’. O bobo da corte, grosso modo, era alguém cujo papel passava por ser da mais baixa ordem possível (portanto, socialmente desvalorizado) mas, ao mesmo tempo, incisivo o suficiente para poder criticar de forma mordaz o que via em seu redor.

Ora, a minha tese é a de que o bobo da corte é um excelente ponto de comparação, mas para demonstrar o que o Charlie Hebdo e outras formas de ‘humor’ com base em discurso de ódio não são. Para tal, avanço com uma proposta analítica (que, em boa verdade, não é nova, mas que quase nunca, ou nunca, vejo aplicada nestas discussões) que pode resolver vários problemas de uma só vez: 1) torna desnecessária a análise feita nos três pontos anteriores, 2) não requer a articulação em espaço público de comentários lesivos, que depois teriam de ser avaliados caso-a-caso, 3) permite retirar princípios gerais aplicáveis a outras áreas da sociedade e da política.

Proponho então que se considerem e analisem estes casos de suposta ‘liberdade de expressão’ sob a ideia de que estes actos de fala são manifestações de discursos que resultam em actos de poder. Assim, ao invés de analisarmos as características formais do acto (é humor?, é conferência?, é livro?) ou as características formais da enunciação (usou palavras ofensivas?, usou conceitos historicamente datados?, usou ambiguidades propositadas?, fez implicaturas?), deveremos antes analisar que relações de poder se estabelecem entre o sujeito de enunciação e o objecto de enunciação, com base nas respectivas posições de enunciação, com base nos respectivos desequilíbrios de poder. Note-se aqui que o que menos interessa é a posição social efectiva desta ou daquela pessoa, tomada isoladamente, mas sim a posição social dos discursos convocados para a defesa, e dos grupos sociais assim representados.

Neste ponto, é possível ir buscar um conceito da Grécia Antiga, muito trabalhado por Foucault – a parrhesia. Este termo é ocasionalmente traduzido como “a coragem da verdade”, mas o mais importante aqui é perceber quais são as características formais desta parrhesia. Em primeiro lugar, o parrhesiastes (a pessoa que usa de parrhesia) tem de acreditar que o que diz é verdadeiro. Isto não quer dizer que o seja necessariamente (ou seja, não é uma espécie de certificado ontológico), mas quem fala tem que acreditar na verdade do que diz. Em segundo lugar, o parrhesiastes tem que estar numa posição social de inferioridade (mesmo que apenas situacional) perante a pessoa a quem se dirige a parrhesia. Em terceiro lugar, (e em ligação com o anterior), o parrhesiastes tem que estar em risco por usar de parrhesia; este risco não precisa de ser um risco de vida, pode ser qualquer forma de punição simbólica, social, material ou física que possa recair sobre ele enquanto consequência directa do uso da parrhesia.

Por todas estas razões, a parrhesia é verdadeiramente um acto de enunciação – ninguém pode simplesmente ‘ser’ parrhesiastes, uma vez que tal função enunciativa surge apenas em contexto, e com o contexto também desaparece. Um homem rico doente pode, usando parrhesia, denunciar as más práticas de um médico que o está a tratar e que tem a sua vida nas mãos, mas fora esse contexto, mais provavelmente seria o médico o parrhesiastes do que o homem rico, por exemplo. Também dadas estas características, compreenderão se eu disser que a defesa da parrhesia é fundamental para a manutenção de uma democracia pluralista. Não é por acaso que Foucault usava também a expressão “falar verdade ao poder”.

Resta portanto ver se as situações acima descritas são ou não equivalentes. Comecemos pelo bobo da corte: de estatuto social baixíssimo, falando perante um poder vastamente superior que o poderia ameaçar e, idealmente, dizendo as coisas tal como as via, mordazmente, recorrendo a discursos que estariam numa posição subalterna face ao poder instituído. Neste sentido, a figura do bobo da corte e do parrhesiastes são correspondentes.

E no caso do Charlie Hebdo? Existe uma crença na própria verdade do que dizem? Sim, é possível que sim. Existe uma posição de inferioridade? Não: não só estamos a falar de uma empresa capitalista em funcionamento (aqui, algo menos importante), como estamos a falar de um discurso normativo, racista, nacionalista, com longa tradição europeia, e com práticas associadas que são sancionadas aos mais altos níveis políticos; enquanto existir racismo, sexismo, homofobia, etc, enquanto componentes constitutivos e organizadores da nossa experiência social quotidiana, estes continuam a ser discursos de poder e não contra poder. Existe um risco associado? Não, mais uma vez: não só porque não existe a posição de inferioridade social que criaria esse risco, como porque não existe sequer a possibilidade de causar dano do outro lado. Dirão “Ah, mas a sede da Charlie Hedbdo foi atacada!” Sim, é verdade. Porém, esse ataque não surgiu de uma instituição mais poderosa do que o próprio racismo constitutivo da sua linha editorial e, mais importante ainda, a onda de solidariedade pan-europeia que surgiu em seguida aumentou ainda mais o estatuto social e económico da publicação, contravencionando o suposto risco. Em suma:  se o bobo da corte, enquanto parrhesiastes, fala de baixo para cima, Charlie Hebdo fala de cima para baixo (como falam de cima para baixo todos os comediantes com as suas piadas sexistas, machistas, racistas, etc.).

Então e Nogueira Pinto? Novamente se segue a mesma lógica. Mesmo ignorando o seu estatuto social e de autoridade enquanto académico e professor universitário, o discurso de Nogueira Pinto é o discurso normativo racializado e xenófobo ainda vigente, que afecta e impacta grupos sociais cuja situação de fragilidade está sobejamente documentada. Também ele, como todo o PNR ou a Nova Portugualidade, está excluído do grupo dos parrhesiastes, e portanto o seu discurso não cumpre a mesma função perante a manutenção da democracia, ou a existência de momentos em que este é remetido ao silêncio (temporário, contextual) não afectam em nada a livre circulação de ideias e do debate político.


Em conclusão…

A “censura” do discurso que viola os Direitos Humanos: 1) não afecta os processos democráticos pluralistas; 2) não é censura; 3) não deve ser usada para apologia da ‘tolerância’; 4) é resultado de uma tentativa de equilibrar relações sociais de poder com vista a uma sociedade mais justa.

Abstinência sexual e morte

 

 

 

 

 

Desculpem lá, mas há ideias que são criminosas. Há propostas políticas que são criminosas.
A notícia acima custou-me a engolir; cheguei a pensar que era um spoof qualquer. Parece que não. Tomara que se venha a descobrir, daqui a uns dias, que isto era falso. Prefiro o ridículo de ter falsamente acreditado nisto, do que a vergonha de isto ser verdade.
Tenho visto pessoas, ironicamente, a perguntar se voltámos ao século XVIII ou XIX. Mas não é historicamente a melhor altura para fazer comparações. Na verdade, mais facilmente poderíamos era estar em 1996, nos EUA, quando o Congresso aprova, à altura, 250 milhões de dólares para financiar programas de “educação sexual” só com abstinência. Ou em 2004, quando a administração Bush Jr. colocou de lado 170 milhões de dólares para o mesmo fim.
Mas porque é que eu chamo a isto de “proposta criminosa”? Bem…
A investigação mostra, por exemplo, que estes programas incluem informação cientificamente errada e que promove estereótipos de género nocivos (aqui), que não ajuda em nada a baixar a incidência do VIH/SIDA (aqui, também aqui, também aqui), que geralmente não alteram em nada os comportamentos sexuais das pessoas jovens (aqui), e por aí em diante…
Ou seja: na melhor das hipóteses, a educação sexual para a abstinência é comprovadamente inútil ou, então, activamente prejudicial.
Sabem o que é que funciona para impedir gravidezes não desejadas, e abortos? Espanto dos espantos: contraceptivos!
Pessoas, não há outra forma de colocar a questão: os jotinhas do PP querem colocar a sua vontade ideológica de pureza à frente da própria saúde e bem-estar das pessoas que dizem defender e representar. Isto é criminoso.
E vocês dizem-me: “Mas, oh Daniel, esses estudos são dos Estados Unidos; nós estamos em Portugal”. Toda a razão. Olhemos então para Portugal, sim?
Em Portugal, 93% das acções de Educação Sexual nas escolas são feitas por elementos externos às escolas (aqui), o que frequentemente se traduz numa aprendizagem fragmentada e desconexa, sem estrutura nem acompanhamento – sendo isto dados de apenas metade das Escolas que foram convidadas a submeter informação. Portanto, o panorama pode ser ainda pior. A ajudar, claro, temos ainda em Portugal Associações de Pais que têm estado fortemente envolvidas em bloquear o acesso dos educandos e educandas a recursos de saúde sexual, acreditando falsamente (aqui) que isso os ajuda a iniciar a vida sexual mais tarde.
Muitos destes pânicos se sustentam numa ideia totalmente ficcional: a de que as pessoas jovens cada vez iniciam a sua actividade sexual mais cedo. Não… é… verdade…! O número de jovens que afirma já ter iniciado a sua vida sexual tem vindo a descer nos últimos anos (de 23,7% em 2002 para 21,8% em 2010 e 12,8% em 2014 – aqui e aqui).
Sabem o que é que está associado com um início mais tardio da actividade sexual? A existência de Educação Sexual de qualidade e um maior nível geral de escolaridade.
Portanto, repitam comigo: A “educação” para a abstinência não existe. Da mesma maneira que água seca, fogo frio e vida morta também não existem.
O que existe, isso sim, é uma campanha dos jotinhas do CDS-PP para prejudicar activamente e propositadamente a saúde (sexual e não só) das pessoas jovens, com especial impacto em raparigas e pessoas não-heterossexuais. A abstinência sexual na “educação” é uma política de morte.

 

Posted by Daniel Cardoso on
 23/11/2016 

Histórias da Academia

Na sequência do meu post anterior – Vamos falar da ‘Academia’ – estou à procura de histórias sobre experiências de estar na academia, de ter passado pela academia, de como é viver de forma precária, genderizada, e frequentemente pouco saudável, na Academia, para que depois elas sejam partilhadas, de forma anónima, conforme forem chegando. Creio que […]

Read More
Posted by Daniel Cardoso on
 01/11/2015 

Entrevista no Correio da Manhã / Revista Domingo

Foi publicado a 1 de Novembro uma entrevista comigo e com a Rosinha, na revista Domingo do Correio da Manhã. Comprem e leiam!

Read More
Posted by Daniel Cardoso on
 21/10/2015 

Open Mind – Open Heart: Artigo na GQ

Saiu recentemente um artigo na GQ sobre questões de género e sexualidade junto dxs jovens portugueses, onde surjo citado. Infelizmente, nem sempre é possível conseguir passar todos os detalhes que se pretendem e o trabalho de edição jornalística arrisca-se a mutilar algumas frases e a alterar o seu sentido. O excerto abaixo é um excelente […]

Read More

Embandeirar em LGBT

stonewall

O Facebook ficou às cores. Não no seu sempre-azul interface, mas nos perfis, muitos, que celebraram a decisão do Supremo Tribunal dos EUA no que diz respeito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo (dentro do modelo binário homem-mulher).

Claro: nem toda a gente mudou a sua fotografia de perfil. A alguns, o assunto não lhes interessa, acham (erradamente) que nada têm que ver com isso (mas olhem que direitos humanos são de toda a gente!). Outros são lesbigaytransfóbicos assumidos, e nunca o iriam fazer (mas como a coerência não é o seu forte, continuam a usar os serviços de uma empresa que viola os seus padrões morais).

Outros ainda (perdoem a simplificação das categorias), preferiram assinalar o dia partilhando notícias várias, que dão conta do que ainda está por fazer, de como ainda há uns dias atrás uma activista trans* foi expulsa da Casa Branca quando tentou chamar a atenção para a violação de direitos de pessoas LGBTQIA+; de como se pode, nos EUA, agora, casar, mas também em vários estados ser-se despedidx sem problemas legais advirem daí, bem como um sem-fim de outros problemas. Boa parte dos quais, note-se, recaem sobre pessoas trans*, que beneficiam pouquíssimo-ou-nada com esta decisão do Supremo Tribunal.

Como é facebookianamente expectável, começaram logo a voar as acusações de que as pessoas deste terceiro grupo eram todas umas snobs elitistas radicais para quem nada nunca está bem ou é bom de celebrar, bem como de que quem mudou a sua fotografia de perfil o fez só para ‘parecer bem’ e que é uma pessoa politicamente alienada e seguidista, totalmente dominada pelo imperialismo cultural americano.

Eu gostava, da minha parte, de fazer voar uma acusação transversal: a de que ambas essas acusações são maniqueístas, binárias, simplistas. Da mesma forma que as pessoas que mudam a foto no Facebook não têm por isso mesmo que ser umas alienadas políticas, também as pessoas que preferem partilhar notícias ou posturas mais críticas não têm de ser, necessariamente, umas snobs elitistas com a mania de que têm uma qualquer superioridade moral.

Não é errado ou mau celebrar esta vitória simbólica.

Mas – e claro que tinha que vir um “mas”, senão a crónica ficava pela metade! – quem o fez deveria responsabilizar-se pessoalmente por ser coerente com essa celebração. Hoje, dia 28 de Junho, é o aniversário da revolta de Stonewall. É o aniversário do evento que, pelo menos na forma como a História acabou a ficar contada, despoletou o movimento pelos direitos LGBTQIA+.

Não, não vou dizer nada do género “Se não sabes o que foi Stonewall, não tinhas direito a mudar a foto do perfil!”. Vou dizer outra coisa, que espero ser mais produtiva: se mudaste a foto do perfil, aproveita o dia de hoje para partilhar algo sobre Stonewall. Se não sabes o que foi Stonewall, respeita o teu próprio acto de teres mudado a foto de perfil, e vai ler sobre isso, nem que seja à Wikipédia. E depois partilha esse novo conhecimento, tal como partilhaste a foto de perfil!

Para aguçar o apetite, e talvez para ajudar a explicar porque há tantas pessoas activistas dos direitos humanos que partilharam ontem coisas que muita gente considera negativas, digo isto: Stonewall não foi feito pelo Estado, foi feito contra o Estado; Stonewall não foi feito por homens gay, foi feito por pessoas trans*, muitas delas não-Brancas.

Agora olha para quem celebra o casamento. Olha para quem beneficia ou pode beneficiar dele. E olha para quem é expulso da Casa Branca. Vês um padrão?

Activismo e responsabilidade da comunidade

2943541121_20b10e08ca

Uma denúncia de violência no namoro / física / psicológica / íntima / de género tomou de assalto o movimento LGBTQIA+ e conexos, recentemente, como se pode ver aqui.

Ora, como é infelizmente comum em casos destes, a verdade dos factos está frequentemente circunscrita a quem está na situação, e quem está de fora pode, no máximo, com base em novos testemunhos, tentar entender se o que sabe (se é que sabe alguma coisa) encaixa com o que passou a saber. Dito de outra forma: uma denúncia não é intrinsecamente verdade e ninguém é telepata ou omnisciente.

MAS…

Mas não precisamos de telepatia nem de omnisciência para perceber um certo número de coisas, independentes que são da veracidade ou não dos factos (destes ou de outros quaisquer):

  • Como qualquer pessoa ligada à temática da violência de género / na intimidade vos dirá, uma das principais razões que leva as vítimas a não denunciar as situações de abuso é o medo de que ninguém acredite nelas; esse medo não é, infelizmente, deslocado, já que essa descrença é frequente, especialmente em casos de agressão sexual, e especialmente com menores – não é este o caso aqui, mas estabelece-se uma cultura da desconfiança, em que a pessoa que faz a acusação é mentirosa até prova em contrário, mesmo quando xs agressorxs fazem coisas que são impossíveis de “provar” a posteriori. Se o movimento LGBTQIA+ e as comunidades que o constituem querem fazer um activismo responsável, feminista, não podem comparticipar deste clima de desconfiança face às vítimas. Um espaço de activismo que não seja um safer space não é, por definição, um espaço de activismo. É um espaço de ‘fazer coisas’, é um espaço de ‘vamos lá juntar-nos para trabalhar’, mas não é, nem pode ser, um espaço de activismo, de activismo enquanto exercício responsável de poder político.
  • Apesar de não ser possível pedir às pessoas que simplesmente acreditem, com 100% de certezas, na versão da pessoa A, B ou C, é falso e irresponsável pensar que a acção certa a tomar se limita a dar um encolher de ombros e dizer “não sou a polícia”. A partir do momento em que existe uma queixa, existe a possibilidade de tomar medidas preventivas de mais abuso. Aliás, essa é justamente uma área em que a protecção às vítimas de violência doméstica / na intimidade falha: porque a pessoa faz a denúncia, e depois tem que ir alegremente conviver com a pessoa denunciada. Ora, se a denúncia é feita para a comunidade, dentro da comunidade, então é responsabilidade inescapável da comunidade fazer esse trabalho de prevenção. Prevenção não é julgamento. Prevenção é aplicar a política do mal menor: é um mal menor que alguém injustamente acusadx seja temporariamente afastadx da comunidade e suas actividades, do que alguém que seja efectivamente vítima de violência ter de continuar numa situação de proximidade com quem agride.

Deixem-me repetir: perante uma situação de abuso, a comunidade não pode ficar simplesmente à espera para ver o que acontece, sob pena de perder toda e qualquer parecença de credibilidade. Uma comunidade que luta pela visibilização política de questões que têm que ver com a política de intimidade de que falava o Ken Plummer há vinte anos atrás não pode ficar parada e não tomar uma atitude forte e vigorosa. Um activismo LGBTQIA+ que não é feminista, que não é coerente com os seus próprios princípios, e que usa dois pesos e duas medidas (luta-se contra “eles”, mas não se cuida das situações do “nós”) não passa de uma pilha de hipocrisia que não está a lutar por direitos de minorias, mas por interesses de cliques.

Isto é válido – especialmente válido – inclusive para quando a pessoa a ser acusada está dentro dessa própria comunidade, quando o abuso vem de dentro e não de fora (e não se enganem, o abuso que vem de dentro existe, é real, e infelizmente é muito ignorado por se achar que a violência de género é a violência só entre homens e mulheres).

Isto leva-nos, tristemente, ao segundo acto desta história.

A pessoa visada pelas acusações respondeu publicamente e directamente às mesmas, contactando um magote de gente, ao mesmo tempo que diz, numa outra versão das declarações, não se estar a defender publicamente (!). E fê-lo usando exactamente o mesmo tipo de discurso que agressorxs por esse mundo fora usam quando são confrontadxs com acusações deste tipo: tentam inverter a situação, identificam-se a si mesmxs como vítimas (literalmente: “sou agora também uma vitima [sic]”). Mais que isso, o discurso de resposta da pessoa acusada é manipulativo: “não comentam [sic] uma injustiça, não condenem alguém sem provas, isto é o que vos querem levar a fazer”, e é patologizante da pessoa que levantou a queixa, fazendo um apelo ao ego dxs destinatárixs da mensagem ao mesmo tempo: “não deixem que a vingança e o desejo de destruição de uma vida vos contamine a assertividade”.

…

Eu não sei, no sentido total da palavra, se as acusações são verdadeiras.

Mas eu não preciso de saber isso para avaliar as respostas dadas pela própria pessoa visada. E estas respostas são as respostas típicas dadas por agressorxs documentadamente culpadxs. Será que esta resposta, em si, constitui prova de que as acusações são reais? Não. De forma nenhuma.

Porém, uma resposta deste género é a antítese dos próprios princípios do movimento LGBTQIA+. Uma pessoa que se considere feminista e activista não tem o direito moral de responder assim, ainda que seja inocente de todas as acusações. Não tem esse direito porque está a recorrer ao mesmo discurso, à mesma retórica que é usada por agressorxs para impedir, bloquear e descredibilizar as vítimas. Não tem esse direito porque estar a patologizar uma (potencial) vítima é aquilo que o patriarcado ensina a fazer, e é aquilo contra o qual é suposto estarmos a lutar. Alguém que pretenda ser coerente no seu activismo e no seu feminismo, ainda que seja injustamente acusadx de algum tipo de violência de género, não pode esconder-se por detrás deste tipo de jogos psicológicos velados.

Portanto, se alguém tivesse dúvidas sobre o que fazer face à acusação, que não tenha dúvidas face a esta nova resposta da própria pessoa. Se alguém diz lutar por igualdade de género, que tome a sua quota parte de responsabilidade em fazer deste mundo um espaço mais seguro para toda a gente, sem pressupostos de pureza adjudicados a ninguém. Quebrem o silêncio, todo o silêncio.

Não deixem que o sentido de comunidade se transforme num espaço seguro para a agressão.

Edit: post citado n' O Clítoris da Razão
Posted by Daniel Cardoso on
 13/03/2015 

Reportagem TSF: «Prazer que bate certo»

Passou no dia 12/2/2015 uma reportagem na TSF sobre BDSM em que contribuí com um pequeno comentário no contexto do estudo “Sexual Satisfaction and Distress in Sexual Functioning in a Sample of the BDSM Community“.

Read More

JS Amadora à conversa sobre… Poliamor

Novo evento marcado, para divulgação do PolyPortugal e do activismo sobre não-monogamias consensuais!

Desta feita, a JS Amadora organizou uma tertúlia sobre poliamor para dia 28 de Fevereiro, às 15:30, na Concelhia do PS da Amadora. Apareçam, divulguem e juntem-se ao evento no Facebook, aqui!

 

Correio da Manhã – 50 Sombras de Grey e Investigação Científica

Recorte do artigo sobre investigação portuguesa em torno do BDSM.

Recorte do artigo sobre investigação portuguesa em torno do BDSM.

Saiu no dia 21 de Fevereiro uma notícia no Correio da Manhã que aborda a investigação levada a cabo por uma equipa portuguesa multidisciplinar, composta por Patrícia Pascoal, Rui Henriques, e eu mesmo. O estudo foi publicado no princípio desta semana, no The Journal of Sexual Medicine, e o resumo pode ser consultado aqui.

Quem quiser ler o artigo publicado no Correio da Manhã, pode aceder a uma cópia em pdf aqui.

No dia anterior tinha também saído uma curta informação sobre o estudo, na mesma publicação, mas onde se afirmava incorrectamente que as pessoas tinham, em contexto de práticas BDSM, mais prazer do que em contexto não-BDSM.

Next Page →
Blog – Daniel Cardoso
Copyright © 2023 All Rights Reserved
iThemes Builder by iThemes
Powered by WordPress & hosted by SiteGround WordPress Hosting