Tenho vindo a assistir a vários debates por entre o burgo que envolvem os três elementos acima: consentimento/consenso, activismo e acção política. E parece-me que há uma série de visões confusas que se baseiam em querer acreditar que um mesmo conceito tem valores e significados diferentes consoante calha (ou dá jeito) e que a coerência interna dos conceitos que se utilizam não é necessária nem passível a ser alvo de crítica quando não existe.
Uma parte do que se passa tem que ver, parece-me, com um equívoco em torno da ideia de consentimento e consensualidade, e de um uso duplo desta expressão. Por um lado, faz-se uma apologia do consentimento informado, activo e entusiasta, no que tem que ver com questões de género e, em particular, no campo da violência de género e violência sexual. Este consentimento implica as quatro coisas que estão na imagem ao lado: é um processo activo de escolha baseada na tentativa de igualizar os poderes existentes entre pessoas diferentes. A violação de qualquer um destes pressupostos implica a impossibilidade de consentir. Por outro lado, emprega-se a expressão no contexto da acção política activista com algo a alcançar a todo o custo, incluindo forçar o conceito de consentimento a encaixar-se em situações onde ele não existe como estatégia de legitimação da acção política pretendida.
Obviamente, o (ab)uso de “consentimento” como estratégia de legitimação é, por si só, uma violação da ideia de consentimento, na medida em que constitui uma tentativa de manipulação do debate político, e uma tentativa de aquisição de superioridade moral por uso de uma expressão positivamente conotada.
Mais do que isso, a forma como o consentimento é tratado dentro do campo da política e do activismo, e que tal mobilização manipulativa reforça, tende geralmente a ter o efeito (pretendido ou não) de silenciar todos os discursos que não façam parte de um corpus central de visões minimalistas e, por conseguinte, também tendencialmente normativas – algo que as leituras agonistas da teoria política feminista têm vindo a destacar há muito tempo.
A resposta a isto, dentro daquilo a que alguns chamam tendenciosamente a “política do possível” (mas só depois de garantirem que têm o direito a definir o “possível”), tem sido o de relaxar ou diminuir o entendimento de “consentimento” ou “consenso”, para uma versão em que a ausência de uma oposição forte, total e fracturante significa, de alguma forma, “consenso”. O paralelismo aqui é óbvio com as situações de violência sexual e de género: na ausência de um “não” auto-evidente e forçosamente afirmado, considera-se legítimo ler um “sim”.
Como é evidente pelo paralelismo acima, acho esta solução perigosa e incoerente. Esta “solução” é feita funcionar porque espalma num só nível aquilo que, na verdade, é uma situação complexa e com vários níveis de participação, presença e, portanto, consentimento.
E, embora possa inicialmente parecer paradoxal, em contexto activista, de tomadas de decisão política e de percursos de acção, as acções consensuais podem ser um alvo importante a atingir, mas não são sempre sequer o resultado mais desejável, dependendo das circunstâncias. E, note-se, falei de acções e não de posições ou crenças – esta distinção é fundamental. Não se trata de decidir em que acreditamos ou o que defendemos, mas o que fazemos num dado momento, perante determinadas circunstâncias (embora as duas coisas devam estar sempre tão ligadas quanto possível), e sempre mantendo em mente que é possível fazer diferentes coisas simultaneamente.
Peguemos num exemplo prático, embora hipotético: o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Eu sou, consensualmente, contra a existência de discriminações legais em função da orientação sexual. Mas eu sou também contra a existência do casamento enquanto instituição. Isso quer dizer que alguém pode, por mim, e com o meu consentimento, afirmar que há que acabar com a existência de discriminações legais em função da orientação sexual, mas não dizer, com o meu consentimento, que eu sou simplesmente “a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo”. Eu sou capaz de participar, consensualmente, numa iniciativa que suporte o casamento entre pessoas do mesmo sexo enquanto combate às discriminações legais, mas não é consensual da minha parte que essa participação seja feita às custas do silenciamento das críticas à instituição do casamento, em simultâneo.
Igualmente – e agora vem aí o passo importante nesta conversa – eu posso consentir-me em manter-me numa plataforma de tomada de decisão e iniciativa, ainda que tenha sido decidido algo que vai contra aquilo em que eu consentiria (e.g.: uma iniciativa a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo que silenciasse questões críticas da instituição do casamento). Mas isso não quer dizer que essa iniciativa foi tomada com o meu consentimento. Isso quer dizer que houve uma votação, eu estava em minoria, e perdi. Tomar a minha presença continuada na plataforma que tomou essa decisão, ou tomar o silenciamento posterior das minhas objecções, como representando uma qualquer forma de consentimento é subverter o próprio conceito de consentimento. Numa situação destas, há que assumir: a iniciativa foi feita por essa plataforma, mas não com o consentimento de todas as pessoas/instituições/grupos envolvidos, e sim por voto maioritário. Pretender apresentar isto como um consentimento implícito para fins de retórica política unitária é falsificar o processo político subjacente, roubando-o de transparência. É pegar, como bem avisam as teóricas da teoria política feminista agonista, no consenso como arma para impedir o reconhecimento de vozes subalternas.
No ponto inverso, bloquear uma medida tomada numa plataforma – como, por exemplo, a existência de um documento político comum inclusivo por discordâncias pela presença de linguagem mais inclusiva – usando como argumento o consenso é igualmente uma subversão do conceito. O truque aqui é invertido: se alguém não defende uma posição, então ninguém a pode expressar, por causa do “consenso” – o efeito, porém, é o mesmo e assim se identifica o abuso cometido. O efeito é o silêncio daquilo que cai fora do tal corpus central de visões minimalistas. Na verdade, porém, isto representa o uso do voto (sob a capa do consenso) como poder de veto. Não é diferente do que acontece, por exemplo, quando a ONU não reconhece o Estado Palestiniano pelo veto de uns poucos.
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Poder-se-ia, neste momento, supor que caio apenas no erro de defender uma abordagem política utilitarista, do voto da maioria como supremo e soberano – mas tal não poderia estar mais longe de uma correcta leitura do acima. Trata-se, no campo das tomadas de decisão políticas, de uma secundarização (teórica e prática) da ideia de consenso como ferramenta única de legitimação política, e também da secundarização da maioria como ferramenta de legitimação política. Trata-se da primazia da diversidade e da pluralidade de vozes, corpos e existências. Toda a decisão que tem como consequência final o silenciamento de vozes, corpos e existências que já são alvo de opressão social é, por definição, problemática e politicamente insustentável, porque injusta e ela mesma opressiva.
Voltando aos exemplos acima: no primeiro caso, a decisão de fazer um evento com exclusão das visões críticas sobre a instituição do casamento pode existir, mas não com o meu consentimento, porque isso seria legitimar o silenciamento das vozes que fazem essas mesmas críticas. Por outro lado, caso eu tentasse bloquear por veto (por falta de “consenso”) esse mesmo evento, estaria também eu a legitimar o silenciamento das vozes que usam o casamento entre pessoas do mesmo sexo como uma forma de combater as discriminações legais em função da orientação sexual – o que seria igualmente ilegítimo.
O segundo caso é o exemplo do que acontece quando alguém esquece esta última frase do parágrafo anterior. Alguém não se revendo numa qualquer reivindicação emprega a importância do “consenso” (falso) como forma de silenciar determinadas vozes, corpos e existências, contribuindo assim para legitimar as desigualdades de poder e visibilidade já existentes na sociedade normativa. Isto é, evidentemente, também opressivo.
Poder-se-ia, agora, supor que caio no erro de fetichizar a diversidade de tal forma que todas as vozes são consideradas equivalentes. Mais uma vez, nada poderia estar mais longe da verdade. Num contexto activista e político, a importância e centralidade das vozes é uma função inversa do poder que estas detêm socialmente. Ou seja, quanto mais longe um determinado grupo está daquilo que a sociedade normativamente considera digno de atenção e validação política, quanto menos poder tem – e este “longe” funciona evidentemente através de uma analítica feminista interseccional – mais importante se torna para os outros grupos salvaguardar e apoiar a existência e expressão da voz desse grupo; na verdade, torna-se a sua obrigação politico-moral, no campo do activismo. Assim, num espaço activista feminista queer, não são as vozes cis-hetero que valem mais, não são as vozes brancas que valem mais, não são as vozes gay-conservadoras que valem mais e por aí em diante, em mil e uma combinações.
Por isso é que, exemplo in extremis, a tentativa (por veto, voto, ou seja-lá-o-que-for) de criar espaço para a expressão de uma voz xenófoba ou racista teria peso zero: a relação entre essa voz e o sistema normativo de poder é demasiado grande. Por isso é que, num movimento LGBTQIA+ que se preze, as últimas vozes a serem prioritizadas e consideradas terão sempre de ser as de qualquer grupo, organização ou estrutura que mais se aproxime dos ideais normativos mínimos que as estruturas de poder social replicam, tendo em conta o papel nocivo da homonormatividade; muito menos deve qualquer grupo, independentemente da sua posição neste esquema, servir-se da influência que possa ter para criar seja que tipo de silenciamento for em relação a quaisquer vozes, corpos e existências.
Versão TL;DR: Se o teu activismo depende do silenciamento de vozes, corpos e existências já discriminadas, you’re doing it wrong.
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