Foi publicado a 1 de Novembro uma entrevista comigo e com a Rosinha, na revista Domingo do Correio da Manhã. Comprem e leiam!
Read MoreFoi publicado a 1 de Novembro uma entrevista comigo e com a Rosinha, na revista Domingo do Correio da Manhã. Comprem e leiam!
Read MoreUma denúncia de violência no namoro / física / psicológica / íntima / de género tomou de assalto o movimento LGBTQIA+ e conexos, recentemente, como se pode ver aqui.
Ora, como é infelizmente comum em casos destes, a verdade dos factos está frequentemente circunscrita a quem está na situação, e quem está de fora pode, no máximo, com base em novos testemunhos, tentar entender se o que sabe (se é que sabe alguma coisa) encaixa com o que passou a saber. Dito de outra forma: uma denúncia não é intrinsecamente verdade e ninguém é telepata ou omnisciente.
MAS…
Mas não precisamos de telepatia nem de omnisciência para perceber um certo número de coisas, independentes que são da veracidade ou não dos factos (destes ou de outros quaisquer):
Deixem-me repetir: perante uma situação de abuso, a comunidade não pode ficar simplesmente à espera para ver o que acontece, sob pena de perder toda e qualquer parecença de credibilidade. Uma comunidade que luta pela visibilização política de questões que têm que ver com a política de intimidade de que falava o Ken Plummer há vinte anos atrás não pode ficar parada e não tomar uma atitude forte e vigorosa. Um activismo LGBTQIA+ que não é feminista, que não é coerente com os seus próprios princípios, e que usa dois pesos e duas medidas (luta-se contra “eles”, mas não se cuida das situações do “nós”) não passa de uma pilha de hipocrisia que não está a lutar por direitos de minorias, mas por interesses de cliques.
Isto é válido – especialmente válido – inclusive para quando a pessoa a ser acusada está dentro dessa própria comunidade, quando o abuso vem de dentro e não de fora (e não se enganem, o abuso que vem de dentro existe, é real, e infelizmente é muito ignorado por se achar que a violência de género é a violência só entre homens e mulheres).
Isto leva-nos, tristemente, ao segundo acto desta história.
A pessoa visada pelas acusações respondeu publicamente e directamente às mesmas, contactando um magote de gente, ao mesmo tempo que diz, numa outra versão das declarações, não se estar a defender publicamente (!). E fê-lo usando exactamente o mesmo tipo de discurso que agressorxs por esse mundo fora usam quando são confrontadxs com acusações deste tipo: tentam inverter a situação, identificam-se a si mesmxs como vítimas (literalmente: “sou agora também uma vitima [sic]”). Mais que isso, o discurso de resposta da pessoa acusada é manipulativo: “não comentam [sic] uma injustiça, não condenem alguém sem provas, isto é o que vos querem levar a fazer”, e é patologizante da pessoa que levantou a queixa, fazendo um apelo ao ego dxs destinatárixs da mensagem ao mesmo tempo: “não deixem que a vingança e o desejo de destruição de uma vida vos contamine a assertividade”.
…
Eu não sei, no sentido total da palavra, se as acusações são verdadeiras.
Mas eu não preciso de saber isso para avaliar as respostas dadas pela própria pessoa visada. E estas respostas são as respostas típicas dadas por agressorxs documentadamente culpadxs. Será que esta resposta, em si, constitui prova de que as acusações são reais? Não. De forma nenhuma.
Porém, uma resposta deste género é a antítese dos próprios princípios do movimento LGBTQIA+. Uma pessoa que se considere feminista e activista não tem o direito moral de responder assim, ainda que seja inocente de todas as acusações. Não tem esse direito porque está a recorrer ao mesmo discurso, à mesma retórica que é usada por agressorxs para impedir, bloquear e descredibilizar as vítimas. Não tem esse direito porque estar a patologizar uma (potencial) vítima é aquilo que o patriarcado ensina a fazer, e é aquilo contra o qual é suposto estarmos a lutar. Alguém que pretenda ser coerente no seu activismo e no seu feminismo, ainda que seja injustamente acusadx de algum tipo de violência de género, não pode esconder-se por detrás deste tipo de jogos psicológicos velados.
Portanto, se alguém tivesse dúvidas sobre o que fazer face à acusação, que não tenha dúvidas face a esta nova resposta da própria pessoa. Se alguém diz lutar por igualdade de género, que tome a sua quota parte de responsabilidade em fazer deste mundo um espaço mais seguro para toda a gente, sem pressupostos de pureza adjudicados a ninguém. Quebrem o silêncio, todo o silêncio.
Não deixem que o sentido de comunidade se transforme num espaço seguro para a agressão.
Edit: post citado n' O Clítoris da Razão
Tenho vindo a assistir a vários debates por entre o burgo que envolvem os três elementos acima: consentimento/consenso, activismo e acção política. E parece-me que há uma série de visões confusas que se baseiam em querer acreditar que um mesmo conceito tem valores e significados diferentes consoante calha (ou dá jeito) e que a coerência interna dos conceitos que se utilizam não é necessária nem passível a ser alvo de crítica quando não existe.
Uma parte do que se passa tem que ver, parece-me, com um equívoco em torno da ideia de consentimento e consensualidade, e de um uso duplo desta expressão. Por um lado, faz-se uma apologia do consentimento informado, activo e entusiasta, no que tem que ver com questões de género e, em particular, no campo da violência de género e violência sexual. Este consentimento implica as quatro coisas que estão na imagem ao lado: é um processo activo de escolha baseada na tentativa de igualizar os poderes existentes entre pessoas diferentes. A violação de qualquer um destes pressupostos implica a impossibilidade de consentir. Por outro lado, emprega-se a expressão no contexto da acção política activista com algo a alcançar a todo o custo, incluindo forçar o conceito de consentimento a encaixar-se em situações onde ele não existe como estatégia de legitimação da acção política pretendida.
Obviamente, o (ab)uso de “consentimento” como estratégia de legitimação é, por si só, uma violação da ideia de consentimento, na medida em que constitui uma tentativa de manipulação do debate político, e uma tentativa de aquisição de superioridade moral por uso de uma expressão positivamente conotada.
Mais do que isso, a forma como o consentimento é tratado dentro do campo da política e do activismo, e que tal mobilização manipulativa reforça, tende geralmente a ter o efeito (pretendido ou não) de silenciar todos os discursos que não façam parte de um corpus central de visões minimalistas e, por conseguinte, também tendencialmente normativas – algo que as leituras agonistas da teoria política feminista têm vindo a destacar há muito tempo.
A resposta a isto, dentro daquilo a que alguns chamam tendenciosamente a “política do possível” (mas só depois de garantirem que têm o direito a definir o “possível”), tem sido o de relaxar ou diminuir o entendimento de “consentimento” ou “consenso”, para uma versão em que a ausência de uma oposição forte, total e fracturante significa, de alguma forma, “consenso”. O paralelismo aqui é óbvio com as situações de violência sexual e de género: na ausência de um “não” auto-evidente e forçosamente afirmado, considera-se legítimo ler um “sim”.
Como é evidente pelo paralelismo acima, acho esta solução perigosa e incoerente. Esta “solução” é feita funcionar porque espalma num só nível aquilo que, na verdade, é uma situação complexa e com vários níveis de participação, presença e, portanto, consentimento.
E, embora possa inicialmente parecer paradoxal, em contexto activista, de tomadas de decisão política e de percursos de acção, as acções consensuais podem ser um alvo importante a atingir, mas não são sempre sequer o resultado mais desejável, dependendo das circunstâncias. E, note-se, falei de acções e não de posições ou crenças – esta distinção é fundamental. Não se trata de decidir em que acreditamos ou o que defendemos, mas o que fazemos num dado momento, perante determinadas circunstâncias (embora as duas coisas devam estar sempre tão ligadas quanto possível), e sempre mantendo em mente que é possível fazer diferentes coisas simultaneamente.
Peguemos num exemplo prático, embora hipotético: o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Eu sou, consensualmente, contra a existência de discriminações legais em função da orientação sexual. Mas eu sou também contra a existência do casamento enquanto instituição. Isso quer dizer que alguém pode, por mim, e com o meu consentimento, afirmar que há que acabar com a existência de discriminações legais em função da orientação sexual, mas não dizer, com o meu consentimento, que eu sou simplesmente “a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo”. Eu sou capaz de participar, consensualmente, numa iniciativa que suporte o casamento entre pessoas do mesmo sexo enquanto combate às discriminações legais, mas não é consensual da minha parte que essa participação seja feita às custas do silenciamento das críticas à instituição do casamento, em simultâneo.
Igualmente – e agora vem aí o passo importante nesta conversa – eu posso consentir-me em manter-me numa plataforma de tomada de decisão e iniciativa, ainda que tenha sido decidido algo que vai contra aquilo em que eu consentiria (e.g.: uma iniciativa a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo que silenciasse questões críticas da instituição do casamento). Mas isso não quer dizer que essa iniciativa foi tomada com o meu consentimento. Isso quer dizer que houve uma votação, eu estava em minoria, e perdi. Tomar a minha presença continuada na plataforma que tomou essa decisão, ou tomar o silenciamento posterior das minhas objecções, como representando uma qualquer forma de consentimento é subverter o próprio conceito de consentimento. Numa situação destas, há que assumir: a iniciativa foi feita por essa plataforma, mas não com o consentimento de todas as pessoas/instituições/grupos envolvidos, e sim por voto maioritário. Pretender apresentar isto como um consentimento implícito para fins de retórica política unitária é falsificar o processo político subjacente, roubando-o de transparência. É pegar, como bem avisam as teóricas da teoria política feminista agonista, no consenso como arma para impedir o reconhecimento de vozes subalternas.
No ponto inverso, bloquear uma medida tomada numa plataforma – como, por exemplo, a existência de um documento político comum inclusivo por discordâncias pela presença de linguagem mais inclusiva – usando como argumento o consenso é igualmente uma subversão do conceito. O truque aqui é invertido: se alguém não defende uma posição, então ninguém a pode expressar, por causa do “consenso” – o efeito, porém, é o mesmo e assim se identifica o abuso cometido. O efeito é o silêncio daquilo que cai fora do tal corpus central de visões minimalistas. Na verdade, porém, isto representa o uso do voto (sob a capa do consenso) como poder de veto. Não é diferente do que acontece, por exemplo, quando a ONU não reconhece o Estado Palestiniano pelo veto de uns poucos.
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Poder-se-ia, neste momento, supor que caio apenas no erro de defender uma abordagem política utilitarista, do voto da maioria como supremo e soberano – mas tal não poderia estar mais longe de uma correcta leitura do acima. Trata-se, no campo das tomadas de decisão políticas, de uma secundarização (teórica e prática) da ideia de consenso como ferramenta única de legitimação política, e também da secundarização da maioria como ferramenta de legitimação política. Trata-se da primazia da diversidade e da pluralidade de vozes, corpos e existências. Toda a decisão que tem como consequência final o silenciamento de vozes, corpos e existências que já são alvo de opressão social é, por definição, problemática e politicamente insustentável, porque injusta e ela mesma opressiva.
Voltando aos exemplos acima: no primeiro caso, a decisão de fazer um evento com exclusão das visões críticas sobre a instituição do casamento pode existir, mas não com o meu consentimento, porque isso seria legitimar o silenciamento das vozes que fazem essas mesmas críticas. Por outro lado, caso eu tentasse bloquear por veto (por falta de “consenso”) esse mesmo evento, estaria também eu a legitimar o silenciamento das vozes que usam o casamento entre pessoas do mesmo sexo como uma forma de combater as discriminações legais em função da orientação sexual – o que seria igualmente ilegítimo.
O segundo caso é o exemplo do que acontece quando alguém esquece esta última frase do parágrafo anterior. Alguém não se revendo numa qualquer reivindicação emprega a importância do “consenso” (falso) como forma de silenciar determinadas vozes, corpos e existências, contribuindo assim para legitimar as desigualdades de poder e visibilidade já existentes na sociedade normativa. Isto é, evidentemente, também opressivo.
Poder-se-ia, agora, supor que caio no erro de fetichizar a diversidade de tal forma que todas as vozes são consideradas equivalentes. Mais uma vez, nada poderia estar mais longe da verdade. Num contexto activista e político, a importância e centralidade das vozes é uma função inversa do poder que estas detêm socialmente. Ou seja, quanto mais longe um determinado grupo está daquilo que a sociedade normativamente considera digno de atenção e validação política, quanto menos poder tem – e este “longe” funciona evidentemente através de uma analítica feminista interseccional – mais importante se torna para os outros grupos salvaguardar e apoiar a existência e expressão da voz desse grupo; na verdade, torna-se a sua obrigação politico-moral, no campo do activismo. Assim, num espaço activista feminista queer, não são as vozes cis-hetero que valem mais, não são as vozes brancas que valem mais, não são as vozes gay-conservadoras que valem mais e por aí em diante, em mil e uma combinações.
Por isso é que, exemplo in extremis, a tentativa (por veto, voto, ou seja-lá-o-que-for) de criar espaço para a expressão de uma voz xenófoba ou racista teria peso zero: a relação entre essa voz e o sistema normativo de poder é demasiado grande. Por isso é que, num movimento LGBTQIA+ que se preze, as últimas vozes a serem prioritizadas e consideradas terão sempre de ser as de qualquer grupo, organização ou estrutura que mais se aproxime dos ideais normativos mínimos que as estruturas de poder social replicam, tendo em conta o papel nocivo da homonormatividade; muito menos deve qualquer grupo, independentemente da sua posição neste esquema, servir-se da influência que possa ter para criar seja que tipo de silenciamento for em relação a quaisquer vozes, corpos e existências.
Versão TL;DR: Se o teu activismo depende do silenciamento de vozes, corpos e existências já discriminadas, you’re doing it wrong.