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O duplo padrão sexual – a ideia de que aquilo que é permitido ou desejável num homem, é condenável numa mulher – é uma das mais frequentes expressões de desigualdade e discriminação de género, e também uma das mais normalizadas. Foi possível ver essa normalização quando, no ano passado, quem se insurgiu contra o piropo foi insultado e desconsiderado, mas é também possível ver isso quando, tão frequentemente, a aparência, roupas e comportamentos relacionais ou sexuais de mulheres são tópico de conversa e condenação, de uma forma que não afecta os homens na mesma medida.

Infelizmente, este tipo de ataques e comportamentos não vem apenas de um qualquer estereótipo de pessoa “mal-formada” ou “mal informada” – muito boa gente, com consciência política para vários factores de justiça social, pode frequentemente ser vista a sair-se com afins disparates que, frequentemente, radicam na aparente indisponibilidade para fazer duas coisas fundamentais dentro do feminismo: colocar em xeque o nosso próprio privilégio e articular explicitamente a interseccionalidade dos sistemas de opressão.

Este último elemento, em particular, tem (também) que ver com uma reflexão sobre as diferentes escalas a que a opressão e a discriminação podem acontecer, e como diferentes sistemas de opressão estão, na verdade, ligados de forma interdependente. Assim, e para dar um exemplo, não é realmente possível fazer uma crítica completa do machismo presente no duplo padrão sexual (ou, sequer, da própria construção de género sobre o que é ser-se “homem” ou “mulher”, já para nem falar nas identidades que extravasam este binómio), sem falar da heteronormatividade deste modelo. Em acréscimo a isto, não é realmente possível fazer uma crítica à heteronormatividade sem nos dirigirmos, também, à mononormatividade subjacente. (A lista de implicações não terminaria por aqui: idade, neurotipia, funcionalidade corporal, questões raciais e de classe económica, entre outras, poderiam livremente acrescentar-se.)

Logo se começam a ouvir vozes: “então mas qual é o problema de eu ser heterossexual?”, “então mas qual é o problema de eu ser monogâmicx?”. Reacções típicas de quem, voltando ao primeiro ponto, se esquece de pôr em xeque o seu próprio privilégio ou a falta de reflexão sobre um determinado assunto. Vejo isso frequentemente ao debater sobre poliamor ou outras formas de não-monogamia consensual: quando se chama a atenção para o facto de que a monogamia traz consigo, na nossa sociedade, uma série de privilégios a vários níveis, e que historicamente a monogamia está associada à necessidade de controlar (economicamente e corporalmente) as mulheres, dentro de um sistema patriarcal, muita gente vê nisso um ataque à sua forma de viver, como se, subitamente, ser-se monogâmicx fosse errado ou retrógrado.

Não: a crítica à monogamia-enquanto-instituição – a crítica à mononormatividade enquanto estrutura de funcionamento social com consequências pessoais e sociais operativas tanto a nível micro como a nível macro – não é uma farpa a quem está numa relação monogâmica, tal como criticar a heteronormatividade não é mandar farpas a quem está numa relação heterossexual. Trata-se, isso sim, de chamar a atenção para os privilégios de ocupar uma determinada posição (ou conjunto de posições) e do que isso implica para quem não tem acesso a esses mesmos privilégios. Trata-se de desnaturalizar experiências e vivências, praticar um pouco de empatia e de recusar, terminantemente, uma frase que vejo usada vezes demais: “Cada um que viva a sua vida, e pronto”.

Esta frase, ainda que tendo pretensões positivas, e apelando ao fim da discriminação, pressupõe igualdade ao mesmo tempo que trabalha contra ela. É o resultado de se pegar numa espécie de ideal utópico, ou de objectivo máximo (a possibilidade efectiva de cada pessoa viver a sua vida, livre de pressões e constrangimentos sociais vários), e o usar como se esse ideal fosse aqui e agora real. Tomar esta posição é esquecer o privilégio e a interseccionalidade, é esquecer que nem toda a gente tem a liberdade de viver a sua vida livre das influências alheias, e que não basta desejar que assim seja para isso acontecer. É indispensável analisar os sistemas de poder, os privilégios e as discriminações e reflectir seriamente sobre como aquilo que nós fazemos também contribui para manter o actual sistema de coisas.

Eu, como homem cisgénero, não posso fazer de conta que não contribuo, ainda que involuntariamente, para a manutenção do sistema binário de sexo-género, quanto mais não seja, pelo facto de que pareço ser uma “prova” de que sexo e género são inseparáveis e estão sempre alinhados, ainda que isso não possa estar mais longe da verdade. Da mesma forma, a quem segue padrões hetero-mono-relacionais, levantam-se as perguntas: “de que forma contribuo eu para o privilegiar da hetero-monogamia?”, “o que posso eu fazer para contrariar a hetero-mono-normatividade?”, “que tipo de hetero-monogamia pratico eu, e com que dinâmicas de género?”. É esta uma das funções centrais do feminismo: ensinar a fazer perguntas dolorosas e incómodas.

 

In  Comemorações do Dia da Mulher: Colectânea de Textos sobre Feminismo e Igualdade de Género, pp. 2-4. AEISCTE-IUL.


Referência

Cardoso, D. (2014). Feminismo e o combate ao privilégio, ou A arte de fazer perguntas incómodas. In Comemorações do Dia da Mulher: Colectânea de Textos sobre Feminismo e Igualdade de Género, pp. 2-4. AEISCTE-IUL.