Select your language

Originalmente publicado aqui.

Poliamor. Um substantivo. Uma palavra com uma longa história, um meme que explodiu recentemente em Portugal, embora tenha vindo a crescer sucessivamente nos países de língua inglesa desde há quase duas décadas. Se traçar a história deste movimento é algo relativamente simples, muito mais complicado, por comparação, é traçar a história desta palavra, que nasceu antes de nascer, que nasceu várias vezes, em vários contextos diferentes, muito embora boa parte dessas vezes tenha sido como adjectivo. E isso prova bem – a este ponto retornarei mais tarde – a diferença fundamental entre adjectivos e substantivos, entre fazer e ser. De resto, o texto esteve para se chamar «Poliamor, ou Da Falta de Originalidade que o Amor Tem». Mas este título tem mais trocadilhos.

O objectivo deste texto é fazer uma breve história desta palavra. Isso vai-nos levar, por incrível que pareça, a 1953 e a uma série de ferramentas online sem as quais a feitura deste artigo seria praticamente impossível. Antes disso, há que oferecer uma definição do que é, afinal, esta palavra no seu contexto contemporâneo, no seu contexto como movimento social emergente. Haritaworn et alia (2006: 518) definem poliamor como «a suposição [assumption] de que é possível, válido e valioso [worthwhile] manter relações íntimas, sexuais e/ou amorosas com mais do que uma pessoa».

 

Poli-Pré-História

A base deste trabalho parte de uma confirmação, compilação e aprofundamento do trabalho levado a cabo pelo blog Polyamory in the News, onde o seu autor – Alan – tem vindo a pesquisar sobre a origem da palavra, usando as mesmas ferramentas à disposição de qualquer utilizador da Internet: as da Google. As primeiras ocorrências deste campo lexical fazem-se na forma de adjectivação, com um sentido semelhante a uma acepção geral do conceito (e que seria, apesar de tudo, actualmente considerada incorrecta pela comunidade): a atracção ou prática sexual com várias pessoas. Vamos então olhar brevemente para as primeiras ocorrências de palavras da família de «poliamor».

O primeiro registo bibliográfico que conhece, até à data, é de 1953, e surge na Illustrated History of English Literature, Volume 1, por Alfred Charles Ward – a Henrique VIII é dado o adjectivo de «determinado poliamorista», enquanto se comenta o surgimento do protestantismo na Inglaterra, algo que surge, de acordo com o autor, precisamente por causa desta característica do rei. Claro que esta utilização tem uma conotação necessariamente irónica e negativa, mas demonstra já como esta junção de raízes latinas e gregas vem de longa data, embora actualmente a palavra na sua forma adjectivada tenda a ser «poliamoros@» (mais sobre qual seria a forma correcta de escrever aqui).

A referência seguinte cabe à palavra «poliamorosa», que surge numa obra de ficção, Hind’s Kidnap, de Joseph McElroy, em 1969, associada à ideia de que a instituição «Família» está «acabada». Mais uma vez, uma conotação negativa, e já aqui a tensão se cria entre um arranjo familiar não-monogâmico e a possibilidade de que a ideia de família (tradicional, normativa) poderia ser posta em causa.

Agora de França, e saltando alguns anos para 1971, na publicação XVIIe Siècle, Joséphine Grieder diz que «ser politeísta é ser poli-amoroso» (esta afirmação é depois citada em La Rochefoucauld and the Seventeenth-Century Concept of Self, de Vivien Thweatt, publicado em 1980). Um comentário interessante, que liga o paganismo e a espiritualidade de inspiração druídica ao conceito de se ser «poli-amoroso», na ligação com várias divindades e aspectos da divindade – ligação essa que, de resto, inclui ainda o hífen, nesta estranha relação entre duas etimologias diferentes, feitas colar ou colidir.

Aproximamo-nos mais ainda do tema nos seus moldes actuais em 1972, quando surge um livro de seu nome Marriage: For & Against, de Harold Hart , em que o autor diz «Parece-me bastante óbvio que as pessoas são muito comummente poliamorosas» (p. 201) mas também, noutra passagem, «Pode dar-se o caso, como dizem alguns, que as mulheres, por natureza, não são poliamorosas […] muitos poucos homens ou mulheres são verdadeiramente polígamos; poucos estariam inclinados a envolverem-se em duas ou mais…» – a pré-visualização fica-se por aí, mas esta questão está longe de ser arrumada, e faz ainda parte de muitas discussões online sobre o contemporâneo entendimento de poliamoroso: se existirá ou não uma qualquer pulsão biológica, genotípica, natural que predisponha os humanos para os relacionamentos não-monogâmicos. Dentro dessa retórica, a monogamia é então construída como uma imposição social com uma qualquer racionalidade por detrás (controlo de poder económico, sexual, moral, entre outros, para exemplificar).

O contexto começa a mudar: a referência seguinte encontra-se nos resumos do 7.º encontro anual da Associação Americana de Antropologia (de 1975). Encontra-se na biografia apresentada de Carol Motts, onde se alude a um futuro da humanidade, no século XXIII, dominado pelo homo pacifis, cujas características incluem ser «individualístico, livre-pensador, poliamoroso, vegetariano». Aqui dá-se um encontro de duas correntes, a académica e a da ficção científica – a ficção científica que é, pelas mãos de Robert Heinlein (e, entre outros, do seu livro Um Estranho Numa Terra Estranha) uma das principais inspirações do contemporâneo movimento poliamoroso, e uma das referências mais frequentemente encontradas.

O adjectivo surge outra vez em 1977, numa obra sobre as representações na ficção da I Guerra Mundial (The First World War in Fiction, de Holger Klein), em que Itália aparece como «poliamorosa-incestuosa». Mas dois anos depois, em 1979 , estabelece-se uma ligação entre o uso deste adjectivo e a comunidade LGBT; em The Gay Report: Lesbians and Gay Men Speak Out About Sexual Experiences and Lifestyles, foge-se à ideia de bissexualidade como sendo demasiado limitativa e, para a substituir, usa-se «poli-amoroso, querendo dizer muitos tipos de relações amorosas com muitos tipos de pessoas». Aqui se nota uma das tensões primárias em torno da corrente ideia de poliamor: estamos por ventura perante uma identidade de orientação sexual? Qual é a relação do poliamor com as práticas sexuais que podem (ou não) estar envolvidas? (Nota: não, efectivamente não podemos confundir poliamor com uma identidade de orientação sexual, porque estamos perante uma identidade de relação; por outro lado, em várias entrevistas jornalísticas em que participei, esta dúvida surgiu mais do que uma vez, portanto parece ainda ser actual referi-lo.)

Sobram ainda duas outras referências deste poli avant la lettre: novamente numa obra de ficção, The Disinherited, por Matt Cohen, em 1986, onde se fala de «perversão poliamorosa»; por fim, na New Scientist de 22 de Abril de 1989, um artigo que fala sobre o avô de Charles Darwin e o seu poema erótico em que plantas são tratadas como pessoas, que levam a cabo as suas «tramas poliamorosas». Daquilo que se conhece, até ao momento, estas são as únicas referências que pré-datam a história da palavra como substantivo. Entra agora o ponto de viragem, e vemos este meme a nascer (mais uma vez, parece e, mesmo assim, em duplicado).

 

A Poli-História, Parte 1

Já se falou aqui de uma referência espiritualista, e essa é mesmo o ponto de origem da primeira referência ao «poliamor», que veio da Igreja de Todos os Mundos (e que é, na verdade, o nome da igreja que o personagem principal de Um Estranho Numa Terra Estranha cria, no livro) que a noção de poliamor nasceu em 1990. Morning Glory Zell-Ravenheart publicou, na newsletter (que mais tarde passou a revista) Green Egg, um artigo chamado «A Bouquet of Lovers», em Maio desse ano. Nesse artigo, constava uma nova palavra: «poly-amorous», um adjectivo que se referia a pessoas que tivessem relações amorosas e sexuais com mais do que uma pessoa simultaneamente, ou que o quisessem fazer, e que reconhecessem o direito de outros o fazerem. De acordo com Oberon Zell, tal como relatado por Alan no seu blog Poly in the Media, poucos meses depois, em Agosto do mesmo ano, a Igreja de Todos os Mundos foi convidada a um evento público em Berkeley, e organizou um Glossário de Terminologia Relacional para lá apresentar – aí sim, pela primeira vez, foi usada a palavra «polyamory», poliamor em português. No entanto, esta foi uma criação e utilização da palavra para um círculo relativamente restrito de receptores: essencialmente neo-pagãos como a própria Morning Glory e Oberon. A palavra tinha já então sido criada mas não desfrutava de circulação suficiente para se tornar uma referência internacional com a projecção que possui hoje em dia – Ryam Nearing ainda publicará em 1992 um livro chamado The Polyfidelity Primer, onde poliamor não encontra qualquer expressão, muito embora a ideia que lá se fizesse passar fosse essencialmente essa.

Desde então, uma boa parte da comunidade pagã em torno de Oberon e da sua família tem estado profundamente ligada à difusão de meios alternativos de pensar a família, sempre dentro de uma lógica religiosa, pagã e espiritualista – o que, apesar disso, não é dizer pouco, tendo em conta a projecção nacional nos EUA. De resto, outra das figuras de proa dessa vertente do movimento poliamoroso é a própria Deborah Anapol. Fundou, junto com Ryam Nearing, a Loving More Magazine em 1995; em Março de 1997, publicou o livro Polyamory: The New Love Without Limits, que é, até à data, um dos ex-libris do movimento poliamoroso na sua vertente espiritualista, tantra e pagã.

 

A Poli-História, Parte 2

A outra vertente do poliamor tem um pendor marcadamente menos religioso ou transcendentalista, podendo mesmo dizer-se que parece bastante mais cosmopolita, e talvez até menos preocupada em mostrar-se anti-capitalista e mais em resolver alguns dos problemas corriqueiros que surgem nas relações amorosas não-monogâmicas consensuais dos países de «Primeiro Mundo» da sociedade ocidental.

Apesar de não existirem ainda dados quantitativos que permitam fundamentar indubitavelmente esta questão, parece ser este o modelo que mais influenciou, por exemplo, a comunidade poliamorosa em Portugal ou, pelo menos, a mais expressiva.

Uma mulher, chamada Jennifer Wesp, estava a debater «a moralidade de ter relações não-monogâmicas, na [mailing list] alt.sex» com Mikhail Zelany, quando «[se cansou] de escrever não-monogamia [e] e não era boa prática retórica utilizar uma [palavra] negativa, hifenizada, para tentar fazer passar uma ideia positiva». Assim, enquanto compunha um e-mail que ela própria considerava fazer parte de umaflame war, Wesp resolveu criar uma palavra que pudesse transmitir uma ideia positiva, que não estivesse linguisticamente vinculada a uma comparação directa com a monogamia. Portanto, neste caso, como no anterior, a preocupação era criar uma palavra que viesse suprir uma falta sentida pelos intervenientes. Ao que parece, a palavra «não-monogamia» para Wesp, tal como a expressão «polifidelidade» para Morning Glory, ficavam em falta face ao conteúdo ideológico que se queria fazer passar. Havia algum elemento que precisava de ser reenquadrado, o que gerou uma irrupção de inovação linguística. No caso de Jennifer Wesp, gerou-se um certo nível de interesse em torno dessa discussão, e dessa palavra, ou antes, dessa discussão surgiu a massa crítica suficiente para criar uma nova mailing list da Usenet – a 20 de Maio de 1992. A mensagem, e subsequente conversa, que propõe a criação do grupo está ainda disponível online.

Esta discussão é, em si, reveladora de boa parte do que já acima se tinha mencionado: onde colocar (dentro da hierarquia da Usenet) um grupo para falar sobre poliamor? E de onde surge, afinal, esta palavra, que não se encontra em nenhum dicionário? Isto tem mais que ver com romance ou com sexualidade? A palavra existiria com ou sem um hífen a separar (sendo que a proposta inicial de Wesp inclui um hífen e o grupo final não)? Tudo isto perguntas levantadas por várias pessoas que estavam envolvidas na discussão. No início, Wesp contava com cerca de 30 pessoas que, achava ela, iriam ter interesse em colocar lá mensagens e dinamizar a lista de discussão. Ela própria admite que a palavra foi inventada, que não é uma «palavra a sério» mas que «se pode sempre ter esperança».

Mal sabia ela…

 

A Força do Meme

Para uma palavra tão inventada e reinventada, para uma série de constantes ressurgimentos tão obscuros, para uma mailing list de 30 pessoas, numa altura em que a Internet era o privilégio de poucos e praticamente não existia na forma em que actualmente a conhecemos, «poliamor» é um meme que até teve sucesso. E, de acordo com o Google N-Gram Viewer, as referências têm vindo a crescer imenso; quando esse crescimento se compara com a expressão «poligamia», por exemplo, vê-se que esta tem tido uma estabilização e até alguma perda de relevância, embora se ressalve que, ainda assim, «poligamia» é uma palavra várias vezes mais frequente.

O objectivo desta pequena viagem histórica não é, de forma alguma, pretender indicar que os vários surgimentos desta expressão, na sua versão adjectivo, comportavam já os indicadores determinantes de quais iam ser as principais problemáticas do movimento poliamoroso. Ainda assim, estamos perante uma palavra que desperta ideias – contra e a favor – e que suscita determinadas filiações que têm vindo a repetir-se e a repercutir-se ao longo desta breve história (muito pouco amorosa, afinal de contas).

Um último pensamento: é nestes momentos que se entende a diferença fundamental entre um adjectivo e um substantivo. O poliamor, como identidade memética, só ganhou força quando surgiu, efectivamente, como um substantivo de pleno direito. É ao ganhar o nome que o poliamor permite aos seus sujeitos adquirir uma identidade, adquiri-lo como identidade para si mesmos e a partir desse ponto estabelecer uma política de identidade, apresentar uma face, uma moralidade, estabelecer um padrão ou conjunto de padrões – e, a partir daí, abrir uma série de questionamentos normativos, ao mesmo tempo que a existência de uma identidade poliamorosa abre o espaço à criação de uma outra normatividade. Alternativa mas, ainda assim, normativa. Esse é o poder do meme, mas também é a sua ameaça. A força memética que alimenta a propagação de uma ideia é a mesma força que faz pender sobre essa ideia a possibilidade de imutabilidade, de permanência.

Talvez daqui a outros vinte anos (e com mais contribuições de ferramentas automáticas de recolha e compilação de dados) seja possível fazer uma história da palavra «poliamor» e afins mais completa, e encontrar outras coincidências (ou falta delas). Para já, um glossário de terminologia relacional de inspiração neo-pagã e uma mailing list com cerca de 30 pessoas deram lugar a 394 mil resultados numa busca Google por «polyamory», 261 mil por «polyamorous» e 18.900 resultados para «poliamor»…

 

Bibliografia

Alan. (2007). «Polyamory in the News: “Polyamory” enters the Oxford English Dictionary». Polyamory in the News!. Obtido a Janeiro 26, 2009, de http://polyinthemedia.blogspot.com/2007/01/polyamory-enters-oxford-english.html

Cardoso, Daniel (2010). Amando vári@s: Individualização, redes, ética e poliamor. Tese de Mestrado em Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa.

Haritaworn, Jin; Lin, Chin-Ju & Klesse, Christian. (2006). «Poly/logue: A Critical Introduction to Polyamory». Sexualities, 9(5), 515-529.

 

Citação deste artigo

Cardoso, D. (2011). Poliamor, ou Da Dificuldade de Parir um Meme Substantivo. Interact, (17). Acedido em http://interact.com.pt/17/poliamor/